Morto em dezembro de 2024, aos 99 anos, Dalton Trevisan foi celebrado intensamente na semana de seu centenário, que completaria no último sábado (14). Uma outra ação vem sendo desenvolvida desde 2023 e agora está quase concluída: a biografia de Dalton Trevisan, escrita pelo jornalista e escritor Christian Schwartz, busca desconstruir os clichês em torno do autor e oferece novas leituras para uma obra que atravessa sete décadas e mais de 700 contos.
O projeto da biografia começou quase por acaso. Ao visitar a editora Todavia para tratar de um livro de ensaios, Schwartz foi provocado por Flávio Moura, editor da casa: “E o Dalton?”. A pergunta, simples, levou a uma pesquisa extensa, alimentada pelo acesso privilegiado ao acervo do escritor.
A biografia que está com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2025 contou com 31 cadernos de diário, que datam de 1959 até o início dos anos 2000, e mais de 2.300 cartas, manuscritos e bilhetes. Além dos manuscritos, o biógrafo também conferiu cerca de 3 mil páginas de diários datilografados.
A primeira ideia que Christian Schwartz contesta é a do recluso. Dalton não era um eremita. Caminhava diariamente pelo centro de Curitiba, frequentava livrarias, restaurantes e cafés, almoçava com amigos e gostava de conversar. Com o passar do tempo, perdeu interlocutores e mobilidade. A partir dos anos 2000, já idoso e sozinho, passou a se proteger da invasão – física e simbólica – que o assédio da fama trazia.
A persona do “vampiro” serviu como fachada. Schwartz afirma que Dalton nunca foi o tipo que buscava histórias à noite, em bordéis ou inferninhos. “Ele deixou a boemia muito antes”, afirma.
“Ouviu histórias, sim, mas filtrava tudo pela própria interioridade. A obra é profundamente confessional”, diz. Em vez do cronista das ruas, Dalton aparece como alguém que recolhia as histórias do mundo para ressignificá-las em forma de literatura.
ROTINA – O contista acordava cedo, era insone e escrevia todos os dias. A literatura ocupava as manhãs; à tarde, livrarias e cinemas; à noite, o jantar às sete, seguido de recolhimento. Durante os anos 1980 seus diários indicam que já se deitava às nove da noite, contrariando a lenda do homem notívago. Escrevia com obsessão e método, alterando títulos, versões e sequências narrativas com a precisão de um relojoeiro.
Na juventude, porém, foi expansivo. Participou de jornais estudantis, discutia literatura e política na universidade, e circulava entre cafés e rodas de conversa. Em 1950, viajou sozinho pela Europa durante seis meses. Passou por diversos países, com especial interesse por Paris (França) e Roma (Itália). Assistia a filmes recém-lançados, ia a cineclubes e anotava referências. “Foi uma viagem de investigação, não de turismo”, diz Schwartz.
CURITIBA IMAGINÁRIA – Apesar da imagem de cronista curitibano, Dalton criou uma cidade própria. A Curitiba de seus contos, segundo Schwartz, é uma criação literária – uma cidade ficcional construída a partir da cidade real. “O grande mérito dele, a grande realização do Dalton foi criar a cidade para a gente”, afirma. “Podemos perfeitamente abstrair de Curitiba de sua obra… ele tinha uma habilidade muito impressionante para trabalhar com arquétipos que não são curitibanos, são humanos”.
A leitura provinciana, centrada na identificação com bairros, ruas e tipos locais, não ajuda a entender a grandeza de sua literatura. “Ele criou uma cidade literária, como García Márquez criou Macondo”, aponta o biógrafo. “Se pararmos de ver tanta ‘curitibanice’ na obra, estaríamos prestando um serviço para a posteridade dele, porque ele é um autor universal”.
LINGUAGEM – Dalton abandonou o gênero literário do romance na juventude. Tentou, insistiu, mas percebeu que sua escrita exigia cortes, não prolongamentos. Sua única incursão no gênero, "A Polaquinha", de 1985, tem estrutura de novela episódica, quase uma sequência de contos com a mesma personagem. Sua consagração como contista não foi acidental, mas fruto da descoberta do próprio limite: o conto como forma exata para o que queria dizer.
Sua linguagem, por outro lado, é o que o coloca entre os autores mais “traduzíveis” do País. Em correspondência com o tradutor holandês August Willemsen, que também traduziu Guimarães Rosa e Clarice Lispector, Dalton mostrava domínio sobre as camadas do texto — ritmo, silêncio, corte e ambiguidade. A recepção na Holanda, onde foi proporcionalmente mais lido, confirma isso. “Ele tocava os corações de leitores de culturas muito distintas”, diz Schwartz.
TODAVIA – Em 2025, o nome de Dalton Trevisan passou a integrar o catálogo da Todavia. É um novo momento para sua obra, que passa a contar com nova diagramação, formato especial e a seção “Canteiro de Obras”, com material extraído do acervo: bilhetes, trechos de diário, cartas e documentos manuscritos. Seis volumes já foram relançados e, ao todo, serão 37 livros.
Essa mudança é decisiva para a internacionalização do autor. “A Todavia tem experiência com prêmios internacionais, com traduções e circulação fora do Brasil. Dalton tem potencial para isso. Mais do que outros autores muito celebrados aqui, ele seria um escritor capaz de vencer o Prêmio Nobel de Literatura”, afirma Schwartz.
HOMENAGENS – A reflexão sobre a obra de Dalton foi tema dos mais variados formatos de arte e debate. A Biblioteca Pública do Paraná promoveu uma seção temática do projeto Ler Junto, um bate-papo sobre a obra do autor e uma edição especial do Cine BPP com filme baseado em seus contos. Isso tudo somado ao lançamento do Cândido nº 162, edição com tema voltado ao escritor.
No Teatro Guaíra, o público pôde assistir ao espetáculo “Daqui Ninguém Sai”, com direção de Nena Inoue e dramaturgia inspirada no universo cortante e ambíguo da obra de Trevisan. Para a diretora, a peça é uma forma de reconectar o autor ao teatro e à juventude.
“Eu queria um espetáculo popular, que as pessoas tivessem acesso e entendessem a obra dele, porque sua obra é muito popular”, afirma Inoue. “O Dalton é o maior contista brasileiro e um dos cinco maiores do mundo. Já fiz várias montagens com textos dele e sei do poder da palavra desse homem”, acrescenta.
LEGADO – O acervo pessoal de Dalton Trevisan – documentos, cartas, diários, anotações e manuscritos – está salvo e em processo de digitalização. Após um assalto à sua antiga residência durante a pandemia, o escritor foi realocado para um apartamento e, com isso, iniciou-se um esforço definitivo de preservação.
Hoje, o material esta sob custódia de uma das principais instituições de acervo do País, o Instituto Moreira Salles, com recursos para conservação e acesso futuro. Dalton preparou tudo com cuidado. Deixou instruções, revisou pessoalmente suas obras antes de morrer, reorganizou trechos e fez emendas à mão. “Ele preparou essa posteridade com muito cuidado”, resume Christian Schwartz.
Hoje, a casa em que Trevisan viveu por quase 50 anos, no bairro Alto da XV, em Curitiba, está prestes a se tornar um espaço cultural. O imóvel será cedido à prefeitura por uma incorporadora e deve abrigar um centro de memória ou casa de leitura.