Pesquisa da UEL investiga a estética e as múltiplas visões da história sobre Aleijadinho

A Estética de Aleijadinho”, pesquisa coordenada pelo professor Jardel Dias Cavalcanti (Departamento de Arte Visual/CECA), pretende estudar a linguagem do barroco e a figura do artista mineiro.
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07/02/2022 - 12:40
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Se nem todos sabem que o nome de batismo do artista plástico Aleijadinho era Antônio Francisco Lisboa, menos ainda imaginam que existem diferentes visões sobre sua figura. Investigar tais perspectivas é parte do projeto de pesquisa “A Estética de Aleijadinho”, coordenado pelo professor Jardel Dias Cavalcanti (Departamento de Arte Visual/CECA). A outra parte, como o nome do projeto sugere, é estudar as características plásticas, de linguagem e outras, que caracterizam a obra do artista dentro de um movimento, uma época e local.

Mineiro de Mariana (MG), o professor conta que cresceu rodeado do Barroco e das obras de Aleijadinho. Formado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Mestre e Doutor em História pela Unicamp, e pós-doutor pela UFRJ, seus objetos de pesquisa, no entanto, eram outros. Voltando-se mais recentemente a Aleijadinho, sentiu este “incômodo” das muitas visões sobre o artista.

Sabe-se que Antônio Francisco Lisboa nasceu em Vila Rica (hoje Ouro Preto), filho de Manuel Francisco Lisboa, um arquiteto português, e de Isabel, brasileira escrava. Foi na oficina do pai que aprendeu sobre desenho, arquitetura e ornamentos. O ano de nascimento é incerto, mas foi na década de 30 do século XVIII. Em 1760, já era considerado entalhador e escultor. E em 1777 surgiu a doença que lhe causou deformidades e o fez perder dedos dos pés, além de originar o apelido pelo qual ficou famoso. Qual doença ainda é objeto de debate.

Ou não? O professor Jardel conta que há quem tenha duvidado da própria existência de Aleijadinho. Não da pessoa histórica: Antônio Lisboa existiu, mas era apenas um simples artesão. Quem não teria existido era o “Aleijadinho mítico", expoente da arte barroca brasileira, comparado até ao deus forjador grego Hefesto, que era manco e produzia maravilhas com suas ferramentas. Esta ideia foi defendida no livro “Aleijadinho e o Aeroplano”, da filósofa Guiomar de Grammont, também nascida em Ouro Preto.

O pesquisador relata que a obra-referência sobre a vida de Aleijadinho é “Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa”, escrita em 1858 pelo advogado e professor Rodrigo José Ferreira Brêtas, nascido em 1815, em Cachoeira do Campo, hoje distrito de Ouro Preto. Escrito cerca de quatro décadas depois da morte do artista, o livro foi publicado primeiramente em capítulos, num jornal, e se baseou em documentos de arquivos intactos e entrevistas com pessoas que conviveram com o escultor, incluindo sua nora.

Fruto de sua época, o auge do Romantismo, o livro de Brêtas mostra um gênio da escultura deformado, até se automutilando para conseguir executar melhor sua obra. Trata-se, segundo Jardel, de uma biografia romantizada. Jardel a compara a “Vidas”, biografia do artista italiano renascentista Giorgio Vasari (1511-1574), publicado em 1550, e que exaltava, de maneira bem tendenciosa, todos os artistas florentinos.

Bem diferente são as visões dos “viajantes”, como explica o professor. O naturalista francês Saint-Hilaire (1779-1853), por exemplo, que esteve no Brasil entre 1816 a 1822, viu a obra de Aleijadinho em Congonhas do Campo, mas considerou o escultor apenas um artesão, dono de uma obra imperfeita. Outro foi Sir Richard Francis Burton (1821-1890), polímata britânico de espírito neoclassicista, que também criticou Aleijadinho e sua falta de formação.

E até na obra “O Seminarista”, de Bernardo Guimarães, pode ser encontrada esta visão neoclássica. No quarto capítulo, um personagem fala das esculturas de Aleijadinho em Congonhas, chamando-as de ruins, imperfeitas, mas com algum valor, porque foram feitas por um artista sem mãos.

Já os modernistas brasileiros tiveram outra visão. Numa época de espírito ufano, o escultor mineiro foi exaltado como herói nacional, cheio de originalidade, numa crítica direta ao ponto de vista dos “viajantes”. Foi o caso, por exemplo, da descrição do escritor Mário de Andrade, que falou de uma artista mulato que trouxe novidade para a arte, a ponto até de preconizar elementos expressionistas em pleno período de Barroco e Rococó. Tais características estariam na sensualidade, no erotismo de algumas esculturas de Aleijadinho, mesmo na Arte Sacra.

Outro que enalteceu o artista mineiro foi o escritor pernambucano Gilberto Freyre (autor de “Casa Grande e Senzala”), que descreveu Aleijadinho como um “gênio perturbado”, assim como uma expressão do talento mestiço brasileiro. Detalhes das obras, como a deformação de soldados romanos e outros personagens brancos, foram considerados por Freyre como uma revanche, uma vingança do escultor, que caricaturizou europeus e colonizadores.

ESTÉTICA BARROCA – Originalmente, o Barroco foi um movimento estético da Contrarreforma Católica, crítico dos padrões humanísticos renascentistas. A ideia era mostrar a pequenez do homem diante da vida e do sagrado. Portanto, exagero era uma das palavras de ordem. Tal exagero apareceu na imponência da arquitetura, na teatralidade das esculturas, no jogo de luz e sombra das pinturas. Tudo para oferecer um contato com o sagrado, uma experiência transcendente, atingindo a irracionalidade do público. Cores, formas, tamanho, tudo concorre, no Barroco, para uma catequização visual.

O professor Jardel lembra que, apesar de o Barroco brasileiro ter se firmado com uma estética própria, as referências ainda eram europeias. Afinal, o Cristianismo chegou do Velho Mundo. O pesquisador explica que toda a organização plástica das obras e Aleijadinho, os gestos e a “narrativa” visual dada pelas esculturas (na Via Sacra e Congonhas, por exemplo), que parecem estar atuando numa peça de teatro, são expressões tipicamente barrocas.

O mesmo vale para pinturas, que fazem um jogo de luz e sombra na qual a luz, que parece não vir de lugar algum, representa o próprio Deus. “A igreja barroca tem uma arquitetura escultórica. É uma escultura viva, com suas linhas, curvas e espaços onde se reúnem fiéis, o padre, o coro, os instrumentos, a luz e os ornamentos”, diz Jardel. Ele cita o cientista das religiões romeno Mircea Eliade (1907-1986) para anotar que o sagrado faz parte da própria estrutura mental humana.

Outro “problema” investigado pelo projeto é a atribuição da autoria. O pesquisador informa que a quantidade de obras atribuídas a Aleijadinho é grande demais para quem viveu menos de 80 anos.

“Aí surgiram até relatos falando em trabalhos esculpidos aos 10 anos de idade, como que para confirmar sua genialidade”, afirma Jardel. No século XVIII, a autoria era tratada de forma muito diferente de hoje. Naquela época, trabalhos de aprendizes eram creditados ao mestre. Muitos sequer assinavam. E a cópia era um sinônimo de habilidade e competência, o que torna muito mais difícil atestar corretamente a autoria. Além disso, explica o pesquisador, até por questões mercadológicas, muitas obras foram falsamente atribuídas a Aleijadinho apenas para agregar valor.

PESQUISA – O coordenador do projeto conta que está construindo um espaço para a pesquisa histórica de qualquer interessado no Barroco ou no Aleijadinho. Para isso, comprou cerca de 100 livros para montar uma biblioteca essencial, que deverá ser doada ao sistema de bibliotecas da UEL. Jardel também tem ministrado disciplinas especiais que têm despertado bastante interesse, não só de alunos do curso de Artes, mas de outros, como História e Jornalismo. Exemplos foram os cursos sobre Leonardo da Vinci e Crítica de Arte. Futuramente, ele deve oferecer um curso sobre Aleijadinho.

O professor também está escrevendo livros com ensaios sobre o escultor mineiro. As obras farão uma revisão bibliográfica, abordarão a estética do artista e visão dos modernistas. Para Jardel, o projeto já abrange biografia, releituras, autoria e a posição social do artista, mas a ideia é extrapolar.

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